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EXEMPLOS DE QUE SOMOS RACISTAS

Alexandre do Nascimento

 

No dia 17 de agosto de 1986, o jornal O Estado de São Paulo, por ocasião falecimento de Mãe Menininha do Gantois e da grande presença de pessoas em seu sepultamento, escreveu em seu editorial: “a importância exagerada data a uma sacerdotisa de cultos afro-brasileiros é a evidência mais chocante de que não basta ao Brasil ser catalogado como a oitava economia do mundo, se o País ainda está preso a hábitos culturais arraigadamente tribais” (grifo meu).

 

Vinte anos depois, em fevereiro de 2006, um dos editoriais do jornal o Globo, referindo-se aprovação do projeto de lei que cria cotas nas universidades federais, pela comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, escreveu: “Mais do que polêmico, um projeto que contraria princípios constitucionais e o bom senso, não pode ser decidido numa omissão, como ocorreu. No caso, a Comissão de Constituição e Justiça. Merece a mais ampla discussão. Que se bem conduzida pode até ter o melhor dos desfechos: a derrota do projeto” (grifos meus). E, em 5 de agosto último, um dia após a entrega aos presidentes da Câmara de Deputados e do Senado Federal, por ativistas e professores universitários, de um manifesto em favor da aprovação do projeto que cria cotas nas universidades e do projeto do estatuto da igualdade racial, o jornal Folha de São Paulo, também em seu editorial, escreveu: “A Lei de Cotas, ao tornar obrigatória a reserva de vagas para negros e indígenas nas instituições federais de ensino superior, ameaça a educação universitária. O mérito acadêmico perde espaço, e a duplicidade de critérios estimula o recrudescimento do racismo nos bancos escolares” (grifo meu).

 

Os três editoriais, que expressam os posicionamentos institucionais dos citados jornais, explicitam os preconceitos e o pensamento neoescravagista das elites brasileiras em relação à população negra e indígena: atraso, ameaça, etc. No debate das cotas nas universidades isso fica nítido, pois o projeto em discussão no Congresso Nacional estabelece cota de 50% nas universidades e escolas técnicas federais para estudantes oriundos de escolas públicas e, dentro dessa, cotas para negros e indígenas na proporção de cada Estado da Federação. No pensamento expresso nos editoriais, a ameaça está na entrada de negros e indígenas nas universidades públicas, numa clara (realmente “clara”) demonstração de que o problema não é a cota e sim a cor da cota.

 

Em atitude recente, a Prefeitura do Rio de Janeiro demonstrou que em seu governo  impera a mesma visão preconceituosa. Em agosto deste ano, a Secretaria Municipal de Educação enviou carta às escolas municipais informando que, a partir de 2007, “não mais será permitido o funcionamento de qualquer pré-vestibular comunitário que por ventura ainda estiver funcionando em alguma unidade escolar” (Circular da 7ª. CRE, 27/08/2006). À imprensa o prefeito César Maia disse que a decisão foi motivada por "questões sanitárias e de segurança". Segundo o prefeito, "houve problemas delicados na cessão de nossas escolas. Em algumas unidades, alunos fizeram necessidades no chão, sujaram os banheiros das crianças, fumaram maconha" (O Globo, 22/09/06), "quando se defeca nos corredores e acontecem relações sexuais em salas e banheiros que serão usados por crianças de 6 e 7 anos, temos que tomar uma atitude" (Jornal do Brasil, 21/10/06) e que "as escolas amanheciam com banheiros e salas urinadas, com feses e até esperma" (O Dia, 21/11/06). As declarações do prefeito demonstram que a atual gestão da Prefeitura do Rio de Janeiro acha (a priori) que os estudantes dos cursos pré-vestibulares para negros e pobres são compostos por pessoas porcas, usuárias de drogas e promíscuas. Declarações levianas (pois não há provas) e discriminatórias, que tentam esconder o que parece óbvio: para a Prefeitura do Rio de Janeiro, assim como para a grande imprensa e alguns "intelectuais", as políticas de inclusão de negros e pobres constituem uma ameaça.

 

Como podemos constatar, o racismo ainda é estruturante do nosso imaginário e continua presente não só no pensamento, mas nas práticas das nossas instituições e da nossa elite, apesar dos avanços que tivemos na constituição da democracia no Brasil entre 1986 e 2006, inclusive com a criação de instituições estatais de promoção da igualdade racial. Avanços que só aconteceram por causa das lutas dos movimentos sociais.

 

Na luta contra o racismo, podemos citar como as grandes passeatas em São Paulo e no Rio de Janeiro, em 1988, e a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Vida e a Cidadania, em 1995, ambas organizadas pela militância negra, como marcos de uma nova dinâmica, em que a afirmação de direitos passou a ser a tônica. Tais eventos, sobretudo a Marcha de 1995, significaram uma guinada do Movimento Social Negro da denúncia do chamado mito da democracia racial à proposição de políticas públicas de combate ao racismo e promoção da igualdade racial e uma forte pressão sobre o Estado Brasileiro. Com seu trabalho, o movimento negro transformou o racismo em crime imprescritível e inafiançável, e iniciou no conjunto da sociedade brasileira e no âmbito da máquina Estatal, o debate público sobre as políticas públicas de ação afirmativa para a população negra e, dentro desse, a proposição das cotas e da necessidade de uma reforma democratizante nas universidades estatais. Os cursos pré-vestibulares para negros e pobres, surgidos no início dos anos de 1990, que são a demonstração da necessidade de recomposição social e racial das nossas universidades, constituíram-se como os principais atores desse processo, e não por acaso foram atacados pelo Prefeito do Rio de Janeiro.

 

Hoje, a sociedade discute cotas para negros, indígenas, pobres e estudantes oriundos de escolas públicas, que já são realidade desde 2002, independente aos projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional. São mais de 40 as universidades que possuem políticas de cotas e outros programas de ação afirmativa. Há, inclusive, experiências de cotas para professores e na pós-graduação. E até o momento não há dados que mostrem uma queda na qualidade do trabalho dessas instituições e nem noticiais de conflitos raciais. Ao contrário, o desempenho dos estudantes universitários dos programas de cotas é o mesmo e, muitas vezes, melhor que os demais estudantes. Na Universidade Federal da Bahia, por exemplo, em 32 dos 57 cursos os alunos do programa de cota tiveram desempenho acima da média geral. E na UERJ os primeiros alunos do programa de cotas terminarão seus cursos no fim deste ano sem que tenha sido registrado nenhum conflito racial, além das reclamações daqueles que consideram “prejudicados”. A ameaça à qualidade e os conflitos aparecem somente na retórica, sem base concreta, dos novos apologetas da democracia racial e articuladores de um manifesto contrário às cotas, também entregue aos Presidentes da Câmara e do Senado em junho desde ano, cuja tônica é a ausência de propostas, ou seja, a conservação das coisas como estão. Baseiam-se apenas na defesa do princípio (formal) da igualdade, a hipócrita declaração de que “todos somos iguais”, e que não institui nenhum processo material de combate às desigualdades, às relações assimétricas e ao racismo, características desta sociedade.

 

Na dinâmica democrática, conflitos e divergências são naturais e não é esse o ponto. O que devemos observar é que, certo ou errado, a política de cotas é uma proposição do movimento social negro (explicitada pela primeira vez no jornal O Quilombo em 1948, mas consolidada na Marcha de 1995), já em funcionamento em diversas instituições e com relativo sucesso no que diz respeito à promoção de diversidade (que é como deveríamos a mestiçagem), da distribuição do que é fruto do trabalho comum (e que deve retornar ao comum), do combate ao racismo e, portanto, da radicalização da democracia.  E qual é a proposta dos atuais porta-vozes da ideologia da democracia racial, além de dizerem “somos todos iguais”, “não somos racistas” ou “pré-vestibulares nas escolas municipais nunca mais”? O máximo que chega esse discurso conservador é na defesa do ensino básico de qualidade, o que não é nenhuma novidade, pois isso o movimento social negro, através dos seus intelectuais, das suas organizações e da sua imprensa já defende antes mesmo do movimento “Escola Nova” liderado por Fernando de Azevedo na década de 1930. Escola pública laica e de qualidade para todos é um dos fundamentos materiais da democracia e bandeira da luta anti-racista, mas não será alcançada sem o desmonte dos mecanismos de privilégios raciais presentes nas dinâmicas das universidades, empresas, instituições estatais, etc. e no próprio currículo escolar, que, como os nossos principais Jornais e a Prefeitura do Rio de Janeiro, têm conteúdos, formas de funcionamento e posicionamentos preconceituosos e discriminatórios.

 


Alexandre do Nascimento, educador, é professor de Cultura e Cidadania e um dos fundadores do Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC). Email para contato: contato@alexandrenascimento.com