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De quem é o racismo?

Alexandre do Nascimento

 

Recentemente, em entrevista para a rádio BBC Brasil (seção brasileira da BBC de Londres), a Ministra Matilde Ribeiro, quando perguntada pelo entrevistador “E no Brasil tem racismo também de negro contra branco, como nos Estados Unidos?”, deu a seguinte resposta: “Eu acho natural que tenha. Mas não é na mesma dimensão que nos Estados Unidos. Não é racismo quando um negro se insurge contra um branco. Racismo é quando uma maioria econômica, política ou numérica coíbe ou veta direitos de outros. A reação de um negro de não querer conviver com um branco, ou não gostar de um branco, eu acho uma reação natural, embora eu não esteja incitando isso. Não acho que seja uma coisa boa. Mas é natural que aconteça, porque quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou”.

 

O que foi dito pela Ministra é de fácil entendimento: quem sofre algum tipo de discriminação ou opressão pode, em reação, praticar o mesmo com quem o discrimina ou oprime, embora no Brasil esse tipo de reação é de muito menor intensidade do que é ou foi em países como os EUA e África de Sul, onde o racismo estabeleceu uma separação completa entre negros e brancos e teve respaldo legal. Aqui, por não haver uma distinção (formal) de direitos para os grupos raciais explícito em Lei e pela miscigenação, a dinâmica do racismo é diferente, a exclusão se dá na própria convivência entre negros e brancos, submetendo negros e negras a constrangimentos, desprezo, desrespeito, depreciações e discriminações que, entre várias coisas negativas, produzem as imensas desigualdades raciais em todos os indicadores sociais, intolerância e violência.

 

Pois bem, o interessante na polêmica construída pelos grandes veículos de imprensa em torno da declaração da ministra foi a própria atitude desses veículos, que trataram o que foi dito pela ministra como racismo e incitação ao ódio racial, inclusive dando voz a intelectuais que, no atual debate sobre cotas para negros nas universidades e sobre o projeto do Estatuto da Igualdade Racial, colocam-se como defensores da ideologia da democracia racial, que como sabemos é um mito. Isso foi feito com mais contundência pelo mesmo jornal que um dia publicou matéria que sustentava que aqui no Brasil o racismo é “cordial”, ou seja, acontece travestido de democracia racial. Se houve manifestação de racismo parece ter sido do próprio jornal, que foi desonesto e nada “cordial”, ao afirmar no título da matéria que a ministra disse que o “racismo de negro contra branco é natural”, abrindo amplo espaço para os que têm interesse em criar constrangimentos à SEPPIR, por discordarem dos discursos e propostas desse órgão, principalmente das propostas de políticas de ação afirmativa para acesso de negros à direitos como educação e emprego. Esses sustentaram a posição do jornal dizendo que "toda vez que alguém faz restrição a uma pessoa ou a um grupo é racismo", que “se insurgir contra alguém pela sua cor, seja ele preto, branco ou amarelo, é racismo”, que “esperamos uma retratação formal da ministra sob o risco de voltarmos a aplicar a lei do talião em plena democracia”, que “uma coisa é considerar natural, outra é sancionar isso”, que “o racismo é um mal que assola a humanidade no mundo contemporâneo e assume várias formas. O Brasil tinha se caracterizado justamente por reprimir esses sentimentos em termos históricos, pelo menos desde a abolição (1888)... o que a ministra fez é muito grave. É mais do que racismo, é incitar o ódio racial” (sic).

 

Considerando, como pudemos ver, que a declaração da ministra não contém racismo e muito menos incitação de ódio racial, no máximo um uso inadequado da palavra “natural”, e vindo da mesma imprensa que, no seu editorial do dia 05/07/06, um dia após a entrega ao Congresso Nacional por professores e ativistas do movimento negro de um manifesto em favor da aprovação dos projetos de cotas nas universidades e do estatuto da igualdade racial, declarou que as cotas raciais nas universidades constituem uma ameaça ao ensino superior é, no mínimo, de causar nojo, pois fica explícito que para eles a ameaça está na cor da cota e não na cota.

 

De fato, boa parte da imprensa no Brasil se comporta como porta-vozes de uma espécie de neoescravagismo ao não tratar como racismo, por exemplo, a violência policial contra jovens negros ou na atitude discriminatória da Prefeitura do Rio de Janeiro que proibiu a presença de cursos pré-vestibulares para negros e carentes nas escolas municipais, ao mesmo tempo em que se posiciona (com argumentos baseados em preconceitos raciais) contra as cotas para negros nas universidades, que obviamente  é uma proposta sobre a qual se pode discordar, mas o problema está nos argumentos utilizados, repletos de preconceitos raciais.

 

A ministra Matilde Ribeiro fez restrição ou se insurgiu contra alguém pela cor da pele e incitou ódio racial? Sua declaração sancionou o racismo em uma sociedade sem racismo? O Brasil passou a reprimir o racismo a partir da abolição formal do instituto da escravidão?

 

O grande erro da ministra ao fazer a declaração que fez, foi esquecer ou desconsiderar o racismo (nada cordial) das oligarquias brasileiras, que já externou (sem críticas da grande imprensa) o desejo de se livrar da “raça” que está no poder.

 


Alexandre do Nascimento, educador, é professor de Cultura e Cidadania do Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PNVC).